quarta-feira, 20 de março de 2013

Ventos, Chá e Lagartixa #Crônicas

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    Depois que cheguei da África não havia muita sujeira no apartamento. De fato estava mais limpo do que quando fui. Não sei como consigo fazer tanta bagunça morando sozinho em um dos muitos trigésimos andares dessa cidade cinzenta. Ainda bem que Matilde existe. Se não fosse por ela, minha vida pessoal seria um caos. Muito além do que realmente é.
   Chegando perto da janela, com a habitual caneca de chá nas mãos, notei que havia uma lagartixa apodrecendo entre os vasos de flores. Muito interessante. Eu pensava que elas não chegavam a este andar devido à altitude e à virtuosa vontade do vento que sopra por essas alturas, mas me enganei. Ela está ali, em ossinhos agora. Registrei o processo em fotos, desde quando lhe restavam alguns órgãos e a pele quase nada ressequida. Dispensei Matilde por uma semana, não sem antes ouvir os protestos de que, quando voltasse, encontraria um pandemônio, porque eu, sozinho, daria conta de dar cabo à organização que ela fizera enquanto estive fora.
   O fato é que queria Matilde longe da janela e de meu pequeno cadáver geconídeo, que se esvanecia lentamente, ali, à minha frente. Quase uma semana e ela está por desaparecer completamente. Formiguinhas fizeram a gentileza de lhe carregar as tripas para alguma galeria dentro da parede. Isso me intrigou ainda mais. Como é que as formiguinhas também resistiam ao vento? Vento que é capaz de mover moinhos, mas não de carregar os insetinhos, nem as lagartixas.
   Dois dias passados liguei para o Horácio, amigo que fiz na faculdade. Hoje ele é biólogo, enquanto eu... Bem, eu viajo. Convidei-o para ver o espetáculo. Evidentemente, ele riu de mim e perguntou se eu não tinha nada mais útil para fazer do que ver uma lagartixa apodrecendo na janela. Apesar do escárnio, Horácio veio, viu as fotos que fiz, tomou chá e me explicou o processo de putrefação das coisas. É fascinante como tudo se esvai. Entendi como o oxigênio que nos mantêm vivos é também o responsável por nossa morte e nosso apodrecimento, tanto quanto os vermes aos quais Brás Cubas dedicou suas Memórias.
   Agora estou aqui, a observar os ossinhos mínimos do que outrora foi um ser habitado por um sopro de vida. De vida dupla! Porque a cauda ainda vive depois que cai e pula de um jeito tão engraçado, que perdemos de vista o resto do corpo da lagartixa de tão enternecidos que ficamos com aquele rebolado.
   O tempo está virando e ameaça chover. O chá que preparei emana um sutil aroma de alfazema. Viro-me para pegar a máquina e registrar, talvez, a última imagem daqueles frágeis ossinhos. Mas, eis que um vento alísio sopra na janela e leva, não sei pra onde, os ossinhos da minha lagartixa. O que me resta é tomar chá.


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